Com grande alegria disponibilizamos a primeira edição da Revista do CEAP/HPJ.
Confira no link abaixo e boa leitura!
Revista CEAP/HPJ nº 1.
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Revista CEAP/HPJ nº 1.
ESBOÇO COMUNITÁRIO EM HOSPITAL DE ESTRUTURA ESQUIZO-PARANOIDE ¹
Niterói, junho de 1969
Raldo Bonifácio Costa Filho
Joacy Lopes Moreira
Carlos Uerley da Costa
Nelsom José de Castro Barbosa
Iso Jorge Teixeira ²
I) Introdução
A experiência descrita nesta comunicação foi realizada em hospital estadual, de estrutura arquitetônica tradicional, com superlotação de pouco mais de 400 pacientes, número deficiente de funcionários e visível carência de recursos técnicos e materiais. Longos corredores, páteos fechados, janelas substituídas por grades, portas de ferro, bancos de cimento e alguns quartos-fortes, bem fortes, entram em sua composição. Nesta estrutura, nos limitamos a parte do setor masculino, com 100 pacientes e que tem relativa dependência das outras áreas hospitalares.
Esta descrição sumária é proposital e, nos parece, por si só, justificar parte do título da comunicação. Ao falarmos de estrutura esquizo-paranóide, adotamos a terminologia exposta num dos trabalhos do último congresso (1) e dêle extraímos o seguinte: “… tôda “loucura” fica concentrada nos pacientes, criando uma necessária dissociação do tipo “loucos” são os pacientes, “sadios” são os que os atendem. Decorre disto um distanciamento entre ambos e a utilização de métodos terapêuticos que sintonizam com esta atitude (…) A estrutura daquêles hospitais defendia-se dos pacientes através de mecanismos primitivos da dissociação, controle onipotente e identificações projetivas e introjetivas. A incapacidade de entender o doente mental e as teorias demonológicas em voga, certamente para isso contribuíram e impunham aquêle tipo de organizar: uma organização numa posição esquizo-paranóide, predominantemente”. (2)
Não nos desviamos de bases já lançadas, no congresso de 1967 (3), para Comunidade Terapêutica (CT), mas incorporamos o que a evolução nos permitiu e acrescentamos outras posições que reforçam a adoção daquela. Sua síntese será a seguinte: 1 – A CT resulta de uma conceituação que considera, no doente, “partes sadias” (ou “funções do ego intactas”). Ou ainda em linguagem analítico-existencial (4): na psicoterapia em psicóticos é possível o confronto entre o “humano no enfêrmo” e o “enfêrmo no homem”. Resulta disto uma situação dialética na qual o paciente é sempre capaz de manifestar-se sadiamente. 2 – A CT obedece a uma visão pluridimensional no tratamento do paciente e por isso integra pacientes, terapeutas e o ambiente na resolução das dificuldades emocionais e biológicas dos primeiros. 3 – O ambiente tem características, tais que se torne psicoterapêutico, abrangendo então uma tolerância às manifestações patológicas, valorização e estímulo às tendências e capacidades construtivas pessoais, atuação dos terapeutas sob supervisão com fins a manter-se integridade individual e da equipe.
II) Evolução
Limitar-se ao tratamento meramente sintomático, nos moldes tradicionais, já não seria suficiente. As queixas, as reivindicações, as tensões em que se viam colocados os pacientes dentro da situação existente. Enfim a necessidade de comunicação, evidenciáveis com a chegada de acadêmicos estagiários à área, suscitaram nestes o desejo de um atendimento mais amplo, os aspectos do relacionamento se incorporam – sem (desconsideração) aos métodos do tratamento habitual. Da ligação de dois acadêmicos com a CT da Seção Olavo Rocha (Dr. Oswaldo dos Santos) (5) e da insatisfação dos terapeutas gerou-se o início de um trabalho, que partindo da humanização lançaria perspectivas que seriam ditadas pela própria evolução do mesmo.
A princípio, o médico de uma das enfermarias reunia-se com 25 pacientes pelos quais era responsável e “os ouvia”. Neste encontro diário, as queixas e as reivindicações constituíam a tônica das reuniões, que se caracterizavam pela livre manifestação e decisões democráticas. O líder clarificava os pontos geradores de tensões, incentivava as capacidades de cada um e fazia despertar soluções a partir do próprio grupo. A figura do líder configurada como solucionador e doador absoluto foi consequentemente afastada. Neste clima, a passividade pouco a pouco cedeu lugar à atividade. E assim surgiram grupos encarregados da limpeza, comissões para junto à dietista encontrar soluções para a comida (reclamação constante) e junto à administração reivindicar lençóis, vestimentas, colchões, medicamento, um livro de ocorrências dos pacientes, feitura de caixotes de lixo, etc…
A motivação despertada e a solicitação de outros pacientes obrigaram a que se estendesse a experiência às enfermarias contíguas. O primeiro grupo operativo foi o dos “vigilantes” — encarregados de preservar a ordem — e o seu desaparecimento espontâneo reflete bem a evolução da forma de relacionamento. Os pacientes crônicos e os de escassa expressividade foram reunidos num grupo (6). Da situação caótica alimentar surgiu o Grupo da Cozinha que permitiu o ingresso da nutricionista na equipe terapêutica. O Grupo do Jornal, já existente, se incorporou à experiência. As portas dos quartos-fortes foram arrancadas e serão o local de reunião de alcoólatras (em estudo). As ansiedades persecutórias do corpo de enfermagem, evidenciáveis desde o início, quiseram substituí-los pelo “páteo-forte”. Um grande páteo foi transformado em campo de futebol. A chegada de estagiários de psicologia e serviço social incrementou a existência de outros grupos e, atualmente, encontramos uma biblioteca, sala de televisão, outra de tapeçaria, cujas chaves e conservação estão a cargo de pacientes. Uma festa de aniversário é realizada mensalmente. Um baile no páteo feminino com conjunto próprio, já faz parte do cotidiano.
III) Funcionamento
Com uma parada no tempo, através de um corte atingindo o momento atual, tentaremos descrevê-lo sinteticamente:
1 – Atendimento individual: neste o médico responsável ou o estagiário se entrega à feitura da observação psiquiátrica, à prescrição biológica ou farmacológica, planeja o tratamento global, estabelece as condições de licença ou alta.
2 – Sessões clínicas semanais: uma com o médico responsável e estagiários, para exame de pacientes novos. Outra com o Prof. Nobre de Melo para estudo de casos difíceis ou que despertem maior interesse.
3 – Reuniões Gerais: médico e os 100 pacientes. Nestas são discutidos todos os problemas de setor, apresentados os novos internados e formados os grupos operativos. Quando necessário, são chamados a nutricionista, o enfermeiro e o administrador.
4 – Reuniões de Enfermaria: estagiários acadêmicos de medicina e de serviço social reúnem-se com os pacientes de sua enfermaria e discutem dificuldades e soluções comuns ao grupo.
5 – Grupos Operativos: saem das reuniões gerais, mas está em estudo uma dinâmica nova na formação dos mesmos. Reunem-se semanalmente, tendo como figura central um dos diversos estagiários.
6 – Reuniões do corpo técnico – às quartas-feiras: médicos, enfermeiros, assistente social, nutricionista, auxiliar de enfermagem. Tem tido características administrativas e não há uma linguagem comum entre todos os seus membros, mas se observa uma notável incoincidência – a pouco produtividade associada ao trabalho dos que negam a experiência.
7 – Reuniões de supervisão: o médico das reuniões gerais, o chefe do STOR e os estagiários. São expostas as atividades, traçados planos e se procura resolver dificuldades entre os componentes da equipe.
8 – Acompanhante do progresso: feito pelo serviço social e médico que tratou do paciente. Por falta de pessoal e planificação neste atendimento, o mesmo se limita à orientação e doação de neurolépticos além de visitas espontâneas ao setor em que estiveram internados. Mas temos verificado que os resultados são amplamente melhores que o encaminhamento ao ambulatório.
IV) Conclusões
A situação ambiental e arquitetônica ainda não é boa. Somente quem a conheceu antes pode sentir com mais intensidade as vantagens da experiência, as quais sintetizaremos, em itens, a seguir:
1 – Reforço nas relações médico-paciente, notável logo à entrada matinal daquele nas enfermarias.
2 – O clima permissível resultante dá lugar a manifestações livres e não restritas às queixas por alta ou doença.
3 – O sentimento comunitário entre os pacientes especialmente notável nas comunicações que nos fazem nos corredores sobre os colegas que passam mal, não dormem ou não se alimentam.
4 – A recordação agradável que guardam do setor à alta e o desejo de ajudar no seu desenvolvimento.
5 – As re-internações são mais facilmente aceitas pelo paciente, não se considerando mais como simples reclusões, não só pela personalização da doença como pelas relações significativas estabelecidas na internação anterior.
6 – Extinção do abominável Quarto Forte e repressões pela ECT ou impregnação abusiva. Lembramos que foi notável a diminuição do número de ECT’s.
7 – O trabalho integrado em equipe elimina o tratamento por setores, para obedecer a uma visão pluridimensional do paciente e consequentemente do seu tratamento.
8 – Finalmente mencionamos a facilitação didática fornecida pela experiência. Esta dá ao estudante todas as fases de aprendizado da especialidade, ou sejam, a observação, o contato, o encontro e a atuação terapêutica.
Referências
(1) Dametto Carmen, Tuma Carmen, Zimerman D. E., Schee Hans I., SPRINZ Isac, Silveira Marlene – Contribuições da Psicoanálise ao Hospital Psiquiátrico: A organização hospitalar – Porto Alegre – RS, março, 1967.
(2) Lopes Moreira Joacy – Imagem do Nutricionista na Equipe Terapêutica, Rio, Julho, 1969.
(3) VIII Congresso Nacional de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental – Porto Alegre – RS, Out. 1967.
(4) Frank V. E. Teoria e Terapia de las Neurosis – Madrid 1964, pág. 39 (versão castelhana).
(5) Acadêmicos Mario e Jairo - 4º ano – FNM-UFRJ.
(6) Costa Filho Raldo Bonifácio, Victer Ronaldo – Experiência Grupal com pacientes de escassa expressividade, IX Cong. Nac. de Neur., Psiq. e Hig. Mental, Rio, Julho, 1969.
Niterói, junho de 1969.
[1] Trabalho apresentando ao IX Congresso Nacional de Psiquiatria, Neurologia e Higiene Mental promovido pela Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Brasil. Julho de 1969.
[2] Autores (em 1969):
Raldo Bonifácio Costa Filho: Auxiliar de Ensino da Cátedra de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense.
Joacy Lopes Moreira: Ex-interno da Fac. idem; chefe do STOR.
Carlos Uerley da Costa: Ex-interno idem.
Nelsom José de Castro Barbosa: Ex-interno da Cadeira idem, aluno do curso de pós-graduação em Psiquiatria da UFRJ.
Iso Jorge Teixeira: acadêmico estagiário do Hospital Psiquiátrico.